segunda-feira, março 14, 2005

 

Gostar de quem não gosta de nós

Esta crónica foi retirada de um livro de crónicas, da psicóloga clínica e psicoterapeuta Isabel Leal, Gostar de quem não gosta de nós.

«Uma queixa que às vezes nem chega a ser queixa, mas apenas desabafo, constatação, talvez perplexidade, é a de se gostar de quem não gosta de nós.
Parece tão natural, tão normal, crescermos, tornarmo-nos gente, encontrar alguém especial de quem gostemos e que goste de nós. Alguém com quem partilhar as coisas boas, más e assim-assim. Alguém que compreenda, aceite, acaricie e esteja lá. Alguém com quem se tenha filhos e projectos e conversas. Parece tão óbvio, tão esperável, tão legítimo que seja assim, da forma tranquila e serena que os pais projectaram e os filmes e livros narraram mil vezes que, quando não é, se reage com espanto e dúvida.
(...)Onde é que falhámos? Em que é que errámos? Por que é que está tudo mal?


Precisamos de perceber o incompreensível, de encontar razões e justificações, de chegar a conclusões definitivas. Por isso mesmo enchemo-nos de argumentos que no essencial se resumem em dois grandes tipos: a perversidade do outro ou a imprestabilidade de nós próprios.
Na primeira versão, acumulamos indícios de como o outro é velhaco, idiota, como nos usou para qualquer fim declarável ou inconfesso.
Na segunda, viramo-nos para nós próprios e ampliamos as nossas borbulhas até se transformarem em quistos nojentos ou deixamo-nos ficar a um canto, sem graça nem alento, convictos de defeitos vários ou de predestinações cruéis.
Em qualquer dos casos, sobrevivemos. Poucas vezes aprendemos o suficiente para na próxima termos cuidados e desvelos connosco próprios. Muitas vezes, aprendemos pouco, tão pouco que repetimos uma e outra vez a experiênciade nos envolvermos com pessoas que não querem, podem ou sabem envolver-se connosco.
Não ligamos, nem vemos todas as outras que estão e parecem estar disponíveis para nós. Sabemos que existem, se fizermos um esforço para pensar no assunto, mas é uma informação que existe apenas em pano de fundo. Importante mesmo é conquistar alguém que não dá, em relação a nós, os sinais certos.
Pretende-se, a um nível que se percebe mal, uma espécie de reparação. Reparação de feridas antigas, de desamores passados, e insiste-se, para lá de todos os limites confortáveis, em continuar por perto de quem nos maltrata, por nada de especial, a não ser gostar pouco de nós.
Vive-se na tensão constante do desafio e vai-se perdendo bocados que podem fazer falta. Mas o mais complicado mesmo é não se ter uma relação porque, como sabem, uma relação é a dois.»

In Gostar de quem não gosta de nós




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