segunda-feira, maio 30, 2005

 

O brilho das sandálias

Sábado à noite, sentada de sofá, enfastiada por um zapping desastroso, decidi que tinha chegado o momento de começar a tão adiada promessa de organizar a minha vida. Olhei à minha volta e achei que dar destino às pilhas de revistas que nascem como cogumelos pelos cantos da minha sala era um bom começo. Sendo doloroso este processo de decisão de me desfazer delas, tento minimizar a culpa, sujeitando-as a uma selecção de conteúdos. De X-ato em riste, comecei por folhear as revistas ditas “femininas”, sendo neste caso o critério de selecção tão diverso como o próprio conteúdo que as caracteriza, passando por uma crónica do Alçada Baptista até uma receita que me parece original. A determinada altura deparo-me com uma crónica da Júlia Pinheiro, cujo o titulo “O brilho das sandálias” remeteu-me imediatamente para o “post” do Barata sobre as “mules” ou “chinelas” femininas, o que lhe valeu o privilégio, de ser poupada ao fatídico destino do papelão.

Estava um dia abrasador. Um calor inclemente castigava todos os que se atreviam a estar na rua. Pouca gente circulava naquela rua sossegada de Campo de Ourique. … Finalmente, vi a velhinha titubeante. Frágil, sozinha, vulnerável. Um restinho de gente a arrastar-se. Aproximei-me mais e saí da minha letargia. A visão daquela senhora era de cortar o coração. Apetecia-me pegar-lhe ao colo e levá-la ao colo. Saia azul muito bem engomada, blusa de seda com flores esbatidas, os braços magros, em esforço, agarravam com determinação as muletas. … No campo de visão dela entraram as minhas sandálias. Muito altas, salto prateado, tiras em azul-turquesa, com um botão enorme cheio de pedrinhas às cores. … a senhora absorta parece ter sido tocada por um efeito de magnetismo. Eleva vertiginosamente a cabeça, solta uma exclamação maravilhada e revela num rosto cheio de rugas um sorriso lindo. Lança uma gargalhada e remata, proferindo “Estas sandálias são maravilhosas. Eu também tenho sapatos muito bonitos. Só que agora não os uso tanto”. … Ali, na tarde branca de um dia de verão, quase assassino, partilhamos um momento de pura cumplicidade feminina… Conversamos sobre sapatos e vaidade feminina. Despedimo-nos como velhas amigas. Uma coisa de mulheres. Inexplicável e comovedor.
Júlia Pinheiro, Revista Máxima




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